Quando era puto e fui estudar de noite o que era fixe era falar francês. Eram os tempos do Jean-Paul Belmondo e daquela bomba da Brigitte Bardot de "E Deus criou a mulher". Depois apareceu aquela música então proibida do "Je t'aime" e, como então adorava coisas proibidas... lá fui eu durante uns anos aprender francês. Mas eu já então desconfiava que o que viria a dar no futuro era o inglês, talvez influenciado pelos filmes do 007 e daquela cena do "Goldfinger", com o Sean Connery. E havia ainda os Beatles e o "Let it be" e também me parecia que, mais dia menos dia, os americanos, que já cantavam de galo, é que iriam dominar por completo o resto do mundo, como já andavam então a tentar fazer no Vietnam. E lá fui eu então malhar no inglês... para não ficar para trás.
Depois passeime dos carretos. Então como é? E os nossos vizinhos aqui do lado, os espanhois, com a sua lingua tão bela e tão parecida com a nossa, não merecem uma atençãosinha? Eles, que entraram de rompante para a Europa e que são o principal mercado das nossas exportações, não são também merecedores da minha atenção? Pois deverão ser, por, para além do Almodovar, com o seu "Átame!", serem os herdeiros de Cervantes e o seu genial e intemporal "D. Quijote de la Mancha", o cavaleiro que, como eu, nunca parou de combater os seus malfadados e sempre metediços "molinos del viento". E lá fui queimar as pestanas no espanhol...
Agora, depois de tantas voltas ter dado o mundo, cheguei à conclusão de que o francês é chique, o inglês é prático e o espanhol é doce mas, o que eu preciso mesmo, precisamos nós todos, é de uma lingua que nos encha os bolsos de pilim, sim, pilim, e do grosso!... nos abra os horizontes para o oriente, para a China, nos ponha em contacto com esses milhões e milhões de pessoas com os olhinhos pequeninos mas muito espertas, tão espertas e ricas que já compram a dívida pública dos americanos e estão-se a marimbar para os seus aviões e misseis... porque quem tem os carcanhóis são eles!...
Janeiro de 1984, Moscovo. Estradas e passeios cobertos de neve. Um frio de rachar, com mais de vinte graus negativos. Bem fiz eu em seguir os conselhos de um meu amigo e comprar uma "chapka", uma espécie de boné russo com extensões para tapar as orelhas, feito de pele de coelho. Acertei também em trazer umas boas botas capeadas com borracha, pois com capas de couro seria de morrer, com a humidade gelada a subir-me pelas pernas acima. Moscovo é uma cidade enorme, com avenidas gigantescas, fria e sem o aspecto das cidades europeias ocidentais, desde logo pela escassez de estabelecimentos comerciais onde se possa comprar as habituais bugigangas ou tomar um chã ou café em cada esquina. Claro que tem restaurantes bons e maus como em qualquer outro lado, e até de luxo, mas para isso é preciso conhecer alguem que domine a cidade. Um amigo levou-me a um desses restaurantes populares situado numa cave meio escondida, atravessado por uma barulheira enorme e frequentado pelos residentes locais, sempre atentos à presença de sofisticados estrangeiros. Foi aí que provei o arenque fumado à maneira russa, acompanhado de uma enorme caneca de cerveja. Gostei e ainda hoje perco a cabeça com peixes fumados.
Ir a Moscovo sem ver o Kremlin é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa. Lá fui eu então ver o ícone do poderio soviético, com as suas muralhas vermelhas muito bem conservadas. Lá estavam o mausoléu de Lenine, a majestosa Catedral ortodoxa de S. Basilio, imponente e belíssima, de cores muito vivas e cúpulas douradas, os famosos Armazéns GUM, onde se podia comprar quase tudo mas se não tivessemos moeda forte estrangeira não compravamos quase nada. Admirava-me muito com toda aquela gente que calcorreva Moscovo, estrangeiros por todos os lados, diversos povos dos mais distantes lugares dos confins do império, russos, kazaques, arménios, tadjiques, moldavos, turcomanos e tantos outros. As mulheres russas davam de sobremaneira nas vistas, com os seus fabulosos casacos de peles, que, acrescidos à sua natural beleza, mais as realçava.
Andar no Metro de Moscovo é uma experiência incrivel, com todas aquelas linhas sobrepostas e estações maravilhosamente ornamentadas, autênticas obras de arte.
Ir a Moscovo e não comer caviar é o mesmo que ir a Paris e não comer paté de pato. O mais caro é o caviar preto mas, à falta de dolares ou marcos, vai mesmo do vermelho, mais barato mas igualmente bom, pelo menos para mim, que não sou esquisito. E é que não sou mesmo, pois até me dei à experiência de provar e finalmente comer várias vezes a famosa "kaxa" russa, uma espécie de papas de aveia.
Muito me admirei de ver a circular em Moscovo centenas e centenas de camiões a carburar gasolina e não gasóleo, muito mais barato. Mas será que esta gente anda a nadar assim tanto em petróleo? Pelos vistos andava mesmo. Outra coisa que demorei a compreender foi o extraordinário interesse dos jovens soviéticos pelas famosas calças de ganga ocidentais, a nossas "jeans", como as minhas, pelos vistos uma autêntica raridade por aqueles lados. Os soviéticos não tinham qualquer dificuldade em fabricar os mais complexos misseis intercontinentais, os mais que gigantescos submarinos atómicos e os mais sofisticados satélites... fabricar "jeans" é que era para eles uma dificuldade, pois que, diziam, corrompia a juventude. Muito honesta e sinceramente... não percebi esta preocupação com as "jeans" ocidentais, mas também não fazia mal, o passeio estava a chegar ao fim.
Para se gostar então de Moscovo era necessário gostar de viajar e contactar todos os dias com pessoas e experiências novas, e eu sempre gostei muito. Para alem do mais, sempre suscitaram a minha admiração os autores russos do "Taras Bulba" e de "Os Irmãos Karamazov"... e eu suspirava por um pouco desse ambiente admirável, mesmo que só aproximado e alterado em muito pelo terramoto de 1917.
Até à próxima, pátria de Gogol e Dostoievski... até à próxima!...
Cada vez me parece mais que vários caminhos se nos deparam para atingir a grandeza como país e multiplas as armas a utilizar para o efeito. Veja-se o caso da Alemanha, arrasada no final da II Guerra mundial e agora, sem tanques nem canhões, dá cartas em poderio económico aos que a venceram e vomita leis e imposições por toda a Europa.
Contava-me meu pai, emigrante em França, que havia lá, em Gerzat, Clermont Ferrand, uma emigrante portuguesa, empregada doméstica, que punha a cabeça dos patrões a andar à roda sempre que se negava a fazer-lhes os famosos bolinhos de bacalhau à moda de Portugal. Os patrões dessa portuguesa ficavam tão extasiados e passados da placa quando ela os fazia que, mal ela acabava de fazer a massa e se preparava para os fritar, vinham por detrás dela e comiam-lhe a massa toda, em fresco, tendo a pobre coitada da portuguesa de fazer nova massa para poder haver nesse dia os ditos bolinhos, mas fritos, como devem ser. Então, contava meu pai, o poder dessa portuguesa sobre os patrões era tal que, se eles queriam comer os tão desejados bolinhos de bacalhau portugueses, teriam de andar atrás da empregada vários dias seguidos, pedindo-lhe e pedindo-lhe, quase de joelhos... "Maria, faz-nos bolinhos de bacalhau, fazes?... Maria, faz bolinhos de bacalhau... s'ill vous plait, s'ill vous plait". Essa empregada doméstica portuguesa tinha os patrões franceses na mão e eles piavam fininho com ela, senão... senão não haveria bolinhos de bacalhau para ninguém!... e isso é verdadeiro poder.
Agora, juntemos os bolinhos de bacalhau aos pasteis de nata, que já conquistaram também ingleses e franceses. Mas Portugal não tem só essas "armas", tem muitas mais, centenas delas. Será que os alemães conseguiriam efectivamente resistir por muito tempo a um bom presunto de Chaves e a um suculento queijo da Serra da Estrela, regados com um tinto Barca Velha?... tenho muitas dúvidas. Os próprios americanos, que andam já a ser vergados pela espinha, aos milhares, na rota duriense do Vinho do Porto, através da empresa de turismo Douro Azul, não tarda nada, mas isto só se nós quisermos, se prostarão aos nossos pés.
Que estamos então nós portugueses à espera para nos tornarmos numa potência mundial, verdadeiros novos senhores do mundo?
"Armas" secretas não nos faltam: ainda temos os ovos moles de Aveiro, os jesuítas de Santo Tirso, as bifanas do Conga, o bacalhau à Brás, o cozido à portuguesa, o leitão da Bairrada, as tripas à moda do Porto, o pão-de-ló de Arouca, o azeite Gallo, os tintos alentejano e do Dão, os choquinos com tinta, a ginginha com elas, os jaquinzinhos fritos, a sardinha assada, o pudim Abade de Priscos, o figado de cebolada, as iscas de bacalhau, os rissóis de leitão, as tripas enfarinhadas, o frango de cabidela, os rojões à moda do Minho, os couratos, os torresmos, o arroz de sarrabulho, o toucinho do céu, o pastel mil folhas, a letria, as rabanadas, o bolo rei, o licor Beirão, a aguardente de medronho, o Mateus Rosé, enfim, não me chegariam 100 gigas de memória para armazenar o autêntico arsenal de iguarias com possibilidade de vergar, a ferro e fogo, a Europa e o Mundo.
De que estamos pois à espera para desenvolver esta nossa veia de conquistadores que nos foi incutida pelos nossos avós de quinhentos?
O mundo que se cuide... bolinhos de bacalhau ao poder!...