Já farto de tanto malhar na democracia de rapinagem em que temos vivido, hoje apeteceu-me relembrar um facto que mudou para sempre a galeria das iguarias gastronómicas cá de casa e assentar a poeira sobre um prato de que muita gente fala... mas poucos o sabem fazer. Estamos pois a falar do famoso prato português de bacalhau com batatas a murro. Sim, poucos o sabem fazer, pois que, quanto ao bacalhau assado na brasa ainda vai que não vai, qualquer português médio e bom pai de família o sabe orientar. Agora, quanto às batatas a murro é que eu já duvido que haja assim tantos a acertar. Mas dirão por aí vocês... "como é que a este cidadão tão ciente dos seus direitos e obrigações e tão zeloso da sua liberdade lhe deu agora para teorizar sobre o bacalhau"? Dirão vocês e muito bem. Mas eu também vos digo, no seguimento dos ensinamentos do meu já ido mas laborioso pai.. "quem não é para comer não é para trabalhar". Por isso eu sou assim... gosto de comer porque adoro trabalhar. Então lá vai:
Um belo dia andava eu com a minha Raínha lá pelas bandas de Cabeceiras de Basto à procura de um restaurante para almoçar. Como sempre, pedimos que nos indicassem um restaurante bom e que não carregasse muito nos calos. Indicaram-nos um bem lá no fundo de uns becos, em local fora do centro da vila, restaurante simples, à maneira das aldeias, com mesas e bancos compridos, frequentado contudo por gente que sabe bem o que quer. É mesmo destes que eu gosto!... Lá chegados, prato logo recomendado... "bacalhau com batatas a murro". Eu e a minha Raínha nem queriamos acreditar no que tinhamos pela frente... pura e simplesmente indescritível e delicioso. Fomos lá mais umas quantas vezes e não descansamos enquanto não dominamos o segredo daquelas batatas a murro, que, quanto ao bacalhau assado na brasa, era tudo uma questão de o comprar bom, saber demolhá-lo e... saber assá-lo. Tudo começa por se comprar batatinhas pequenas, lavá-las muito bem lavadas, dar-lhes um golpesinho com a faca e colocá-las a cozer em água e sal. Seguidamente, depois de cozidas, mas não demasiado, escorre-se a água, dá-se um murro em cada batatinha sem as desfazer, colocando-as de seguida numa assadeira, polvilhadas com sal grosso e regadas com azeite. Seguidamente, vão ao forno, previamente aquecido, até ficarem estaladiças.
Entretanto, assa-se o bacalhau na brasa, juntamente com pimentos. Seguidamente, e para servir, coloca-se o bacalhau, os pimentos às tirinhas, cebola às rodelas, azeitonas pretas e alhos picados em cima das batatinhas. Depois, rega-se tudo com azeite e serve-se de imediato. Bacalhau na braza com batatas a murro nunca comi tão bem como em Cabeceiras de Basto... mas se conhecerem melhor apitem.
Agora, depois disto tudo, não me venham dizer que sou um chato e que só sei palrar sobre... teorias da conspiração.
Por vezes teimamos em levar a vida demasiado a sério, desperdiçando o momento actual em prol de um suposto bem melhor no futuro. Entretanto o futuro chega e então lamentamo-nos de termos tratado mal a nossa vida em momentos chave e que nunca mais voltam. Vem esta tirada a propósito do actual momento que todos vivemos, em que supostamente alguns, poucos, se aboletaram ao bem bom da vida, enquanto a grande maioria se contenta, se isso for possível, com os sucedâneos. É que toda a gente fala por aí que já vivemos dias melhores, em que uma laboriosa classe trabalhadora,nos tempos da outra senhora,secontentava com umas quentinhas e louras pataniscas de bacalhau e azeitonas e se dava ultimamente ao luxo de, pelo menos uma vez ou duas ao ano, se alapardar em torno de uma travessa de lagostins ou camarão, ao passo que hoje se contenta, se contentar, com uma travessa de rissóis de suposta carne ou de camarão nem vê-lo. E quem fala da classe trabalhadora pode também falar da classe média, pois essa, para além dos lagostins ou camarão, também acrescentava à travessa umas duas ou três lagostas, que isto de classes é assim, degrau um pouco mais acima e tudo é diferente na hora do repasto.
Claro que as classes altas passam e sempre passaram ao lado do camarão, do lagostim e da lagosta... pois a sua vida sempre girou e gira em redor do caviar, se possível beluga, que isto do caviar ossetra e sevruga é e sempre foi para a classe média alta. Ora, como é do conhecimento de grande parte dos portugueses que não se interessa só por futebol, a classe trabalhadora vive hoje em Portugal horas de autêntica amargura, com os tostões a serem contados a toda a hora. O mesmo tem acontecido à classe média, massiçamente destruída pelas políticas de austeridade do actual governo. Perante tudo isto, não faltará muito pouco para voltarmos à divisão salazarenta do passado em classe do caviar e classe das pataniscas de bacalhau pois, quanto às classes do camarão, lagostins e lagosta... já eram!...
Mas olhem, uma boa patanisca de bacalhau com salsa e cebola quanto baste... até que caía já que nem canja!...
No tempo em que a minha rica avósinha era viva a austeridade era mesmo a sério... era todos os dias. Não era fartura de manhã e esbanjamento à tarde, era austeridade a toda a hora. Seis netos para alimentar era uma grande consumição e fortes dores de cabeça. E a austeridade não era para um neto ou dois... era para todos lá em casa, que com minha mãe, meu pai e minha avó somavamos nove. A austeridade de hoje em dia é só para alguns, para os que vivem do seu trabalho e das sua reformas, pois que esses que andam nessas TV's a propalar a austeridade estão bem resguardados e não prescindem das suas mordomias. Veja-se o caso do Ministro da Solidariedade e Segurança Social, o tal que chegou de "lambretta" e agora se passeia num confortável Mercedes. O homem não se satizfez em passar da "lambretta" para um Renault Clio ou para um Fiat Uno... não!... o homem teve logo que saltar, mal chegou ao Governo, de uma modesta "lambretta" para um espampanante e milionário carrão. Para quem é então a austeridade?... para o Zé pacóvio, claro!...
Não, no tempo da minha avósinha não era nada assim. Lembro-me muito bem do esforço que se fazia lá em casa para que o nosso estomago não andasse a dar horas, como eu via em tantos outros miúdos lá da rua. Tudo se aproveitava, todas as sobras guardadas para uma próxima refeição. Muitos dos pratos que eu hoje ainda adoro aprendi a gostar deles nesses tempos de rigorosa e diária austeridade. Era o bacalhau à espanhola, o bacalhau cozido, o bacalhau à Brás, o bacalhau à Gomes de Sá. Era a sopa de legumas, as torradas de sêmea com manteiga ao domingo de manhã, antes da missa. Havia também um aproveitamento de sobras que a minha avósinha fazia e que hoje, cá em casa, para além dos outros pratos, ainda faço. Trata-se do pastelão com brôa de milho, uma iguaria parecida com a tortilha espanhola e que eu adoro. Aproveitavam-se as sobras de carnes, chouriços e batata cozida e cortava-se tudo aos bocadinhos, juntamente com cebola e salsa picada. Juntavam-se as sobras com a brôa de milho, esfarelada à mão, dentro de uma tijela, juntamente com a cebola e a salsa. Misturava-se tudo com cinco ou seis ovos batidos, gema e clara, e temperava-se com sal e um pouco de pimenta. Colocada a sertã ao lume e depois de devidamente aquecida, fazia-se como uma simples omelete, mas a toda a largura da sertã, como as tortilhas. Dava um triangulo para cada um dos netos... mas sabia a pouco. Humm... aviava já agora uma!...
Um dia desta semana vou lembrar os tempos de austeridade da minha rica avósinha com um pastelão com broa de milho, não só para alguns felizardos... mas para todos lá em casa.
Cada vez me parece mais que vários caminhos se nos deparam para atingir a grandeza como país e multiplas as armas a utilizar para o efeito. Veja-se o caso da Alemanha, arrasada no final da II Guerra mundial e agora, sem tanques nem canhões, dá cartas em poderio económico aos que a venceram e vomita leis e imposições por toda a Europa.
Contava-me meu pai, emigrante em França, que havia lá, em Gerzat, Clermont Ferrand, uma emigrante portuguesa, empregada doméstica, que punha a cabeça dos patrões a andar à roda sempre que se negava a fazer-lhes os famosos bolinhos de bacalhau à moda de Portugal. Os patrões dessa portuguesa ficavam tão extasiados e passados da placa quando ela os fazia que, mal ela acabava de fazer a massa e se preparava para os fritar, vinham por detrás dela e comiam-lhe a massa toda, em fresco, tendo a pobre coitada da portuguesa de fazer nova massa para poder haver nesse dia os ditos bolinhos, mas fritos, como devem ser. Então, contava meu pai, o poder dessa portuguesa sobre os patrões era tal que, se eles queriam comer os tão desejados bolinhos de bacalhau portugueses, teriam de andar atrás da empregada vários dias seguidos, pedindo-lhe e pedindo-lhe, quase de joelhos... "Maria, faz-nos bolinhos de bacalhau, fazes?... Maria, faz bolinhos de bacalhau... s'ill vous plait, s'ill vous plait". Essa empregada doméstica portuguesa tinha os patrões franceses na mão e eles piavam fininho com ela, senão... senão não haveria bolinhos de bacalhau para ninguém!... e isso é verdadeiro poder.
Agora, juntemos os bolinhos de bacalhau aos pasteis de nata, que já conquistaram também ingleses e franceses. Mas Portugal não tem só essas "armas", tem muitas mais, centenas delas. Será que os alemães conseguiriam efectivamente resistir por muito tempo a um bom presunto de Chaves e a um suculento queijo da Serra da Estrela, regados com um tinto Barca Velha?... tenho muitas dúvidas. Os próprios americanos, que andam já a ser vergados pela espinha, aos milhares, na rota duriense do Vinho do Porto, através da empresa de turismo Douro Azul, não tarda nada, mas isto só se nós quisermos, se prostarão aos nossos pés.
Que estamos então nós portugueses à espera para nos tornarmos numa potência mundial, verdadeiros novos senhores do mundo?
"Armas" secretas não nos faltam: ainda temos os ovos moles de Aveiro, os jesuítas de Santo Tirso, as bifanas do Conga, o bacalhau à Brás, o cozido à portuguesa, o leitão da Bairrada, as tripas à moda do Porto, o pão-de-ló de Arouca, o azeite Gallo, os tintos alentejano e do Dão, os choquinos com tinta, a ginginha com elas, os jaquinzinhos fritos, a sardinha assada, o pudim Abade de Priscos, o figado de cebolada, as iscas de bacalhau, os rissóis de leitão, as tripas enfarinhadas, o frango de cabidela, os rojões à moda do Minho, os couratos, os torresmos, o arroz de sarrabulho, o toucinho do céu, o pastel mil folhas, a letria, as rabanadas, o bolo rei, o licor Beirão, a aguardente de medronho, o Mateus Rosé, enfim, não me chegariam 100 gigas de memória para armazenar o autêntico arsenal de iguarias com possibilidade de vergar, a ferro e fogo, a Europa e o Mundo.
De que estamos pois à espera para desenvolver esta nossa veia de conquistadores que nos foi incutida pelos nossos avós de quinhentos?
O mundo que se cuide... bolinhos de bacalhau ao poder!...