O fiel jardineiro da Quinta da Boeira
Quem desce a Rua Teixeira Lopes, em Gaia, vindo do Largo dos Aviadores, depara-se, sensivelmente ao meio da rua, do seu lado esquerdo, com a conhecidíssima Quinta da Boeira, que em meados dos anos sessenta e até à alguns anos atrás, pertenceu a uma família de ingleses proprietária dos famosos armazens de vinhos Porto Taylor's. Meu pai, por essa altura, nesses anos difíceis para quem vivesse unicamente dos rendimentos do seu trabalho, labutou como jardineiro nessa famosa quinta. Fazia aí, juntamente com outros jardineiros, todos os trabalhos inerentes a uma propriedade já com algum porte, trabalhos que poderiam ir desde o tratamento de um simples quintal até à poda de árvores e tratamentos de relvas. Como toda a gente sabe, os ingleses adoram estufas de flores e o meu pai, muito habilidoso na matéria, foi incumbido pela esposa do proprietário de fazer a sua respectiva manutenção e replantação anual das mais variadas plantas e flores. Mal o meu pai lhe colocou as mãos em cima, a estufa começou a brilhar e a reflectir uma vitalidade que a todos encantava, sobretudo à senhora inglesa, esposa do proprietário. O meu pai selecionava os bolbos da futuras plantas, mudava contantemente os vasos nas alturas certas, regava com arte e sabedoria, dando um jeito à ponta da mangueira para que a água caisse nas plantas com suavidade e carinho, falava com as flores, sim, meu pai dizia que era necessário falar com as plantas e muitos outros truques mais que só ele na quinta sabia e dominava, como estrumar determinadas flores e plantas com urina, sim urina. A acrescer a tudo isto, meu pai era um jardineiro extremamente limpo e, também por isso, todas as pessoas para quem trabalhava gostavam dele. Se não acabasse o serviço que andava a fazer no mesmo dia, tinha contudo a preocupação de varrer tudo e deixar o jardim limpo e asseado. Gostava do que fazia, e era tudo.
Um dia meu pai dirigiu-se à senhora e explicou-lhe que fazia todos os trabalhos da quinta como os outros colegas e que, para além disso, cuidava da estufa, trabalho que, para além do meu pai, mais ninguem sabia fazer. Achava meu pai, então já com quatro ou cinco filhos para sustentar, que a senhora bem poderia dar-lhe um ligeiro aumento de ordenado, para o compensar do esforço extra que fazia com a estufa. A senhora disse redondamente que não, que se lhe aumentasse o ordenado a ele também teria que fazer o mesmo aos outros. E que, para além do mais, disse a senhora, trabalhava lá na quinta um outro jardineiro que lhe viera já dizer que sabia tratar tão bem da estufa como ele, Adriano, e que o faria pelo mesmo ordenado que já ganhava. Continuou então meu pai a fazer todo o trabalho da quinta e também o da estufa mas, na melhor altura, despediu-se e foi trabalhar para outro lado, com um ordenado já bem melhor.
Passado um ano ou dois, a senhora inglesa da Quinta da Boeira mandou alguem contactar meu pai para que o mesmo se dirigisse à quinta para falar com ela. Meu pai lá foi falar com a senhora, que lhe pediu, encarecidamente, que voltasse a tomar nas suas mãos a estufa e cuidasse dela como só ele sabia, pois que... "desde que você, Adriano, se foi embora, nunca mais tivemos flores como quando você cá estava, e tudo na estufa murchou". Meu pai sorriu para a senhora inglesa e desculpou-se que não tinha tempo, pois entrava cedo todos os dias e saía tarde e, para além do mais, a estufa da quinta requeria um tratamento diário e se cuidasse dela só nos fins de semana não iria resultar na estufa de que a senhora tanto gostava de mostrar aos estrangeiros que visitavam a quinta várias vezes ao ano. A senhora não desarmou e tentou comprometer o meu pai no serviço, mas meu pai mais uma vez alegou que não tinha tempo e que, ou fazia bem o serviço da estufa ou, pura e simplesmente, nem lhe tocava. A senhora mais uma vez insistiu e instou meu pai a vir tratar da estufa diariamente, na hora do almoço da empresa onde trabalhava, que ficava perto. Era um esforço descabido para o meu pai, que trabalhava lá na empresa com tarefas bastante pesadas e necessitava do máximo de descanso. Mas, por artes e promessas de bom pagamento, a senhora lá convenceu meu pai a fazer diariamente um "biscate" na hora do almoço e novamente meu pai, passado pouco tempo, colocou a estufa da senhora inglesa a brilhar e a encher a mansão da quinta com as mais belas flores que se possa imaginar. Mas a história não ficou por aqui.
A senhora, passado uns meses, confrontou meu pai com o, no seu entender, exagerado ordenado que lhe estava a pagar, dando a entender que era demasiado para um trabalho que não era assim tão difícil e não requeria conhecimentos assim por aí alem, e que até já tinha alguém em vista que lhe faria mais barato e igual. Meu pai parou de imediato o que estava a fazer e disse à senhora que a partir daquela altura não mais tocaria na estufa e que a senhora poderia contratar para a tarefa quem bem quizesse... e foi-se embora. Meu pai soube mais tarde, passado uns tempos, que a estufa nunca mais foi bonita e bem tratada como quando andava pelas suas mãos e que a senhora estava muito desgotosa com tudo isso. Mais tarde soube tambem que a outrora bela e resplandescente estufa estava simplesmente... abandonada.
Alguns anos passaram e, um domingo de manhã, um carro com motorista esperava meu pai à porta da capela dos Padres Redentoristas, que entretanto aí assistia à missa. O motorista vinha da parte da senhora inglesa da Quinta da Boeira, que pedia por favor e encarecidamente a meu pai que viesse urgentemente com o motorista à quinta para dirigir e supervisionar a confecção de palmas de flores, como só ele sabia fazer e eles não conseguiam, para o funeral do proprietário inglês da quinta, que entretanto havia falecido. O meu pai lá foi urgentemente a correr fazer aquilo que ele mais bem sabia fazer... tratar e falar com flores.
Decorridos uns anos, ainda hoje tento aprender a falar com flores... mas acho que jámais o farei tão bem como o meu pai o fazia na famosa Quinta da Boeira.