Oxalá que pelo facto de me referir aqui ao meu terrível Taliban, não venha um dia destes a ser incomodado pela CIA ou pelo FBI por ter aqui escrito o termo "Taliban". É que, não sei se sabem, mas os nossos amigos e conselheiros americanos parece que têm um sistema qualquer a funcionar na "net" que capta e regista, "just in time", todas as palavras que possam trazer perigo para sua hegemonia a nível mundial. Ora a palavra "Taliban" pode muito bem ser um desses casos, já que, embora tenham sido os próprios americanos a inicialmente dar treino e apoio aos ditos talibans, aquando da invasão do Afeganistão pela antiga URSS, nos idos anos de 80 do século passado, agora toda a gente sabe que os americanos já não vão na bola desses adoradores extremos do profeta Maomé. É que, diga-se já, e para poupar o precioso tempo aos ex-amigos americanos de Snowden, o meu terrível "Taliban" é apenas e tão só um destro e simpático... gatinho!...
Pois é, eu sou um indefectível admirador de gatos, gatas e gatinhos e pelo-me todo por analizar e apreciar o comportamento e destreza destes nossos amigos felinos. Além do mais, sou muito tocado pela independência e maneira de ser dos inteligentes gatinhos, que confiam no dono... mas sempre desconfiando. Acontece que há uns tempos atrás adoptei, em regime de liberdade total, um desses espertos e ágeis bichinhos, a quem alguém que trabalhava em frente à minha casa deu o nome de "Taliban", certamente pela sua rebeldia. Tinha eu nessa altura um periquito numa gaiola e costumava, nos dias de sol aberto, pendurar a dita gaiola num ponto alto do terraço exterior da minha habitação. E não é que o nosso "Taliban" engraçou com o passarinho? Observava-o, observava-o, sempre muito atentamente e muito quietinho, esticando o pescoço quanto podia para poder observar melhor. Eu, admirado, contei a cena a um amigo, que me disse logo: "o gato vai-te apanhar o pássaro"!... e eu: "estás maluco pá, o pássaro está muito alto"!... "Está muito alto?... mete na cabeça pá, o gato vai-te papar o pássaro", prosseguiu o amigo... Os dias entretanto passaram e eu, sempre que fazia sol, lá punha o periquito cá fóra e, descontraído, o persistente "Taliban" continuava na dele, observando, esticando o pescoço. Ele na dele e eu não minha... "está muito alto gatinho, não chegas lá"!...
Um dia de sol raiante, estava eu descontraído em casa despois de ter posto o pássaro cá fora, oiço um estrondo enorme no terraço e disse para mim mesmo... "não acredito"!... a gaoila estava no chão, de porta aberta, e o "Taliban" a correr, assustado, para cima do muro das trazeiras. Em resumo: o "Taliban" deu um salto de mais de dois metros e atirou com a gaiola ao chão... só não conseguiu foi apanhar o periquito, que fugiu para o pinhal. O "Taliban" não conseguiu... mas tentou!...
De quantas coisas nos queixamos nós que não conseguimos na vida, quantos objectivos achamos difíceis de concretizar... sem tentarmos sequer?...
Toda a gente conhece o cruzamento do Rego da Água, na freguesia da Madalena, Vila Nova de Gaia. Não sei se já repararam mas o local é servido por uma paragem de autocarros dos STCP. Aqui há uns anos deu-se por lá uma cena de bradar aos céus e de partir a moca e que para mim é, ainda hoje, um verdadeiro exempo do que deve ser um verdadeiro português suave. Num belo dia, logo pela manhãsinha, estava a dita paragem de autocarros no Rego da Água repleta de passageiros para apanhar o 57 para a Praça Almeida Garrett, no Porto. Homens, mulheres, crianças e idosos aguardavam, nervosos, a sua vez para poder entrar na viatura, que já se aproximava. Quando tudo parecia que ia correr pelo melhor, eis que aparece ali um corpulento cão a rosnar e a ameaçar raivosamente cada passageiro que tentasse subir as escadas para entrar. No café em frente, um ainda meio sonolento e pacato português suave observava a cena.
Todos os dias, pela manhã, na dita paragem, o assanhado "dog" repetia a dose e causava autênticos calafrios e medo a todos quantos usavam a dita paragem do autocarro para fazer seguir as suas duras vidas para a frente. De cada vez que se repetia a cena, lá estava o nosso português suave, em frente, a cofiar o seu bigode e a observar a aflição dos passageiros perante as arremetidas perigosas do cão. É que, pasme-se, todos tinham receio do bicho, e muito medo até, mas, como acontece tantas vezes neste belo país à beira mar esquecido... ninguém fazia nada!... e uma desgraça, todos falavam (só falavam, entendem!?...) um dia certamente aconteceria ali, na paragem do autocarro, em pleno Rego da Água. Mas um belo dia, preparava-se já o enorme bicho para ameaçar de novo o pessoal, eis que sai disparado do café em frente o agora decidido e imparável português suave, quecorre, rápido, em direcção ao provocador e perigoso cão, atirando-se para cima dele e, ao mesmo tempo, agarrando-o no focinho, pregou-lhe de seguida com duas valentes ferradelas no pescoço. Perante a admiração e o espanto de toda a gente, ouviu-se um pungido e certamente doloroso... caín!... caín!... e o corpulento e raivoso cão lá se foi, para sempre, daquela paragem de autocarros, deixando de ameçar quem se não metia com ele.
Por isso, meus amigos, que jeito nos fariam nos dias de hoje uns quantos portugueses suaves com esta presença de espírito e deste calibre... é que, infelizmente para a maioria, andam para aí uns quantos "cães" raivosos a ladrar e a ameaçar sem terem razão!...
Os meus melhores amigos são... todos aqueles que me valorizam pelo que eu sou e não pelo que eu tenho, que por sinal, pelo menos para mim, é o suficiente para poder levar uma vida de cabeça levantada e digna, sem dever nada a ninguém. Mas conheço o suficiente da vida para poder dizer que nem todos valorizam num suposto "amigo" o que ele é... mas sim o que ele tem, ou poderá vir a ter. E dá-me um gozo muito grande poder analizar e apreciar de perto esse gente tão caprichosa com as suas aparências e as dos outros e poder vê-los, ufanosos, nas suas andanças para cá e para lá, tão decididos e obstinados em vender uma imagem de grandeza que não têm, de riqueza que não é nenhuma, de conhecimento que nunca tiveram ou deixaram a meio há já muito tempo, de requinte saloio que ao virar da esquina se transforma ou esboroa na mais pura encenação.
Os meus melhores amigos são... todos aqueles que, pobres, ricos ou remediados, me cumprimentam e comigo falam só pelo prazer da minha companhia, me criticam quando têm que criticar, mas toleram igualmente os meus dias menos bons, as minhas palavras que num dia de azar me sairam um pouco injustas ou a despropósito. Não são certamente tão bons meus amigos aqueles que me viram a cara só porque tenho um carro dois anos mais antigo que o seu, ou porque conduzem um Mitsubishi e eu um Renault, ou então porque têm uma piscina de fibra em casa e eu, embora tenha espaço, não quero nem penso vir a ter nenhuma. Mas por vezes não se trata só do facto do ter ou não ter, mas do que dizem ser importante ou não ser, pois existem "amigos" que o são ou deixam de ser só pela dita "importância" que acham que temos ou não temos.
Os meus melhores amigos são... finalmente, os que veem algo em mim de que se possam orgulhar, ou sentir desinteressado prazer em compartilhar, porque os toquei em algum ponto da sua vida que necessitavam corrigir ou melhorar. Não me parece contudo que sejam tão meus "amigos" os que sintam inveja do que acham que tenho ou sou, que me desdenham pelo que sou ou tenho, que me tolerem pela suposta "importância" que eu não desejo nem quero ter. Que sejam meus amigos, sim, mas por tudo o que eu na realidade sou:
Nasci numa família muito religiosa, católica, apostólica e romana, e desde tenra idade e até hoje que nunca me desliguei, apesar do meu afastamento da militância religiosa propriamente dita, de um certo pensamento e agir diário tendo em conta os muitos ensinamentos e princípios da acção católica que me foram transmitidos. Como pecador e simples ser humano que sou, acho que nunca procurei negar as minhas culpas, quando as tenho, e sempre tentei aceitar, não sem também contrariar, toda a dimensão de um viver diário carregado de naturais dificuldades, enganos, sonhos, aspirações, desejos, vitórias, ilusões, decepções, frustações, mas sempre, sempre com a esperança que o dia de amanhã será diferente, talvez melhor, que sempre haverá possibilidade de nos tornarmos pessoas boas, justas, simples, humildes, isentos de inveja e ódio em relação aos outros, por mais sórdidos que esses outros sejam.
Esta minha dimensão como homem foi-me transmitida pelos meus pais. Com a sua incomensurável sabedoria terrena, dedicação, bondade e simplicidade, sempre tiveram tempo para trabalhar arduamente, tratar dos seus seis filhos, de uma mão cheia de netos e outros que nem netos eram, a todos ajudando como podiam, sempre com boa cara, com boa disposição, sabendo-se lá contudo como estariam por dentro, sabendo-se lá por que dificuldades materiais e monetárias estariam a passar. E, com este empenhamento e trabalheira toda, ainda tinham tempo para rezar, para pedir a Deus que protegesse a sua familia e todas as pessoas que no mundo estivessem em dificuldades e sofrimento. E faziam isto todos os dias antes de se deitarem, religiosamente, com o terço na mão, nunca se esquecendo, quer chovesse ou fizesse sol, de frequentarem a Missa todos os domingos e dias santos para revigorarem as suas preces.
Mas meu pai e minha mãe não tinham somente princípios morais e religiosos que, apesar do meu distanciamento da militância católica, sempre me cativaram. Eles tinham igualmente princípios sociais e éticos que deixaram em mim marcas indeléveis que procuro hoje transmitir orgulhosamente aos meus filhos, e que eles seguem. O princípio da honestidade a toda a prova foi o que me deixou mais marcas. Meus pais nunca foram ricos, antes pelo contrário, mas sempre foram respeitados por aqueles que com eles acordaram e trataram por sempre terem cumprido escrupulosamente com os seus compromissos. No local onde quase sempre moraram um conhecido e respeitado comerciante de mercearia chegou até a dizer dos meus pais, à boca cheia, para quem o quizesse ouvir, que "confiava mais depressa um milhão de contos nas mãos deles que um simples escudo nas mãos de muitos ricos". Mas, além deste, outros importantes princípios me foram por eles transmitidos, como o da importância do trabalho, da pontualidade, da entreajuda, da amizade, da bondade, da misericórdia, da compaixão, da renúncia ao ódio e à inveja sobre todas as formas, do amor ilimitado aos mais próximos e necessitados.
Por tudo isto de bom que me transmitiram e ensinaram, meu querido Pai e minha querida Mãe, muito obrigado e...
No meu tempo de "caloiro" as praxes eram mais giras porque começavam logo aí por volta dos dez, onze, doze anos. No meu caso começaram tinha eu ainda nove anos e meio, altura em que fui "praxado" de uma forma que me marcou para a vida toda. Tinha eu então acabado de fazer o quarto ano, na altura chamado de quarta classe. Como lá em casa não havia "chêta" que chegasse para encher a panela para caldear os pratos de nove pessoas, entendi por bem pedir aos meus pais autorização para ser "praxado", que naquela altura significava ir... trabalhar. Trabalhar, pois claro!... Não sabem o que significa ir trabalhar com nove anos e meio? Eu sei. Os meus pais ainda me perguntaram se não queria continuar a estudar, e eu disse que sim, mas mais tarde, à noite, como trabalhador estudante.
Mal comecei a ser "praxado" lá na empresa, chegava todos os dias a casa extremamente cansado, com o cabedal todo partido e as mãos doridas das farpas de madeira que entravam por lá cima. Para ajudar à "integração" de todos os "praxados", estavam instuidas normas de conduta imperativas para toda a gente, tais como: levantar-me todos os dias da semana, sábados incluídos, às sete horas da manhã para estar à porta da empresa, pronto para dar inicio à "praxe", aí por volta das oito; ser "praxado" todos os dias da semana, sábados incluídos, das oito da manhã ao meio dia, ininterruptamente, com pesos na ordem dos dez a vinte quilos; todos os dias, após o almoço de uma hora, continuar com a mesma dose de "praxe" até às dezoito horas. Mas o mais extraordinário é que as "praxes" então decorriam pelo ano inteiro, de Janeiro a Dezembro, sem espaço para férias, já que naqueles meus tempos felizes exigir férias no tempo da "praxe" era motivo para ser expulso da empresa... e por justa causa.
Muito me admiro eu agora por a malta actual exigir isto e mais aquilo para ter a sua "praxe", por andarem às brutas lambadas uns com os outros, a comer cócó do "Dux" lá do sítio e a beber xixi da namorada do "Veteranorum". No meu tempo, acho eu, era tudo muito mais giro... bastava ter um pai e uma mãe com eles lá no sítio e uma vontade e sentido de obrigação enorme de contribuir para a panela da sopa, já que pilim que chegasse não havia.
Reinaldo Fateixa sempre foi um gajo de bem com a vida. O dia de hoje será sempre como um outro dia qualquer, começando logo pela manhã com uns quantos telefonemas de avaliação ao estado de espírito dos seus principais "amigos", entenda-se aqui como amigos aqueles de quem ele desconfie que possam ter algo de importante e com interesse para si. Se não for o caso não são amigos, mas outra coisa qualquer, que isto de perder tempo com tesos pinguelas não dá. Hoje, entre outros, começou logo por ligar ao Teles, coisa que já andava para fazer há umas semanas atrás. Trata-se de um contacto de extrema urgência, pois já lhe sopraram aos ouvidos várias vezes que o gajo anda na maior, com um carrão preto de dois escapes, que o sogro, já que a pasta é tanta, lhe deve ter passado a fábrica para as mãos ou coisa assim do genero e, claro, torna-se necessário uma manobra subtil de aproximação ao naco, do tipo... "Oi Teles!... deu-me umas saudades danadas do tempo em que andei contigo na Primária, tenho uma admiração por ti que nem imaginas, dá para tomarmos um copo um dia destes?" Picou?... não picou?... já vamos ver!...
Lançada a fateixa ao Teles, vamos pois ver no que a "pescaria" vai dar, que o dia ainda nem chegou a meio e ainda sobra muito "peixe" para fisgar. Está na hora de o Reinaldo ligar ao Amorim, aquele "amigo" que lhe foi apresentado como sendo uma "pessoa muito importante", gerente de banco ou coisa assim do género. Estes é que são bons, conhecem outros "amigos" também "importantes" e assim a abordagem torna-se muito mais fácil, funciona tudo em sistema de rede, pois claro, tipo networking. Parece que o Amorim comprou há dias uma bela quinta não sei para onde, lá para o Minho, e é necessário tirar a coisa bem a limpo... "Está?... Teles?... é o Reinaldo!... estás a ver quem é?... há que tempos não te via, pá, morro de saudades das nossas conversas. A minha mulher também gosta muito de conversar com a tua. Ainda por cima tens uns filhos tão lindos... o quê? estás para o Minho?... um dia destes passo por aí, se me convidares, claro!"
Pronto, o Teles já está também aviado!... vamos lá ver no que a manobra vai dar. Já estamos a meio da tarde, será que ainda dá para lançar a rede a mais algum freguês? Porque não o Ilídio, aquele que tem um negócio de turismo rural ou coisa do género lá para Baião ou Marco de Canavezes, já nem sei bem? Se o gajo montou uma estrutura daquelas é porque está bem calçado, só pode ser. Deve ter herdado lá do tio ou sacado umas maquias ao Banco. O que importa é que tem bago, e não é pouco... "Oi Ilídio!... lembras-te de mim, o Reinaldo?... sou o amigo do Amorim, o gerente do Banco, ele é que me disse que tens andado lá para Baião. Não é Baião?... então é no Marco, não é?... ele bem me disse, pá, que tens para aí não sei o quê, uma coisa bem agradável, pelos vistos. É que, sabes, já estou farto do Algarve e agora deu-me para andar pelo interior. Pois... entendo... estás a começar... mas só irei aí em condições muito especiais... os tempos estão difíceis... é que nós cá em casa gostamos muito dessa zona... tu entendes, não entendes?"... e pronto, deixa lá ver agora se este "peixinho" vai picar!...
Admiro muito o Reinaldo Fateixa... com ele os dias nunca são monótonos, antes bastante empolgantes e produtivos!...
De tempos a tempos dou-me a pensar se valerá mesmo a pena queimar os meus neurónios com assuntos tão sérios como o futuro do meu país, a educação e os princípios que ensinei aos meus filhos, o esforço contínuo para acompanhar a evolução da sociedade, a necessidade de me informar e adquirir livros e mais livros, conhecer novos autores e teorias sempre em evolução. Para quê tanta preocupação com assuntos relativamente aos quais a grande maioria das pessoas não passa nenhuma bola e nem está para aí virada? Será que isso de querer ser cidadão integral e a tempo inteiro leva alguém a algum lado neste país? Acho que tenho mais dúvidas que certezas sobre o assunto.
Quando olhamos para o lado que vemos nós? Ali vai o António, um gajo que nunca teve pruridos com coisa nenhuma, sempre que abria a boca saía sujeira, já esteve inscrito nos partidos A, B, C e D, já rastejou e bajulou safardanas que se farta, mas, olha o gajo, todo maneirinho, fatinho Hugo Boss, carrão bojudo à porta de casa, aparentemente numa boa e irradiando riqueza e felicidade. Olha, ali vai o Filipe, o tal que andou a colar centenas de cartazes do MRPP e era um acérrimo defensor da ditadura do proletariado e, incrível, é vê-lo agora como secretário de estado, pelo PSD, no ministério da solidariedade e segurança social, com uma boa maquia no pocket todos os meses. Mas que latosa, hein?... de um simplório caga-tacos aos berros contra o social-fascismo, lá se enfiou na gamela das Misericórdias e da caridadesinha e, em três pulos, aparece agora, como que por magia, bem agarradinho ao poleiro que controla os milhões da Segurança Social. Isto para não falarmos do Afonso, aquele gajo que berrava com quanta força tinha na assembleia municipal contra o PSD e a direita, mas o presidente da câmara, que era um gajo fino que se farta, lançou-lhe a fateixa e fez-lhe uma proposta de pegar ou largar: passar para a lista do PSD nas próximas eleições, tacho garantidinho a carregar papeis de um lado para o outro e a mandar uns bitaites nos serviços camarários, ordenadão de morrer e chorar por mais, a partir de quatro dígitos, carro a tempo inteiro e dúzias de secretárias e assistentes louras, morenas e ruivas a entrar e a sair o dia inteiro lá do gabinete. Era pegar ou largar. O que é que achas que ele fez?... aceitou de caras, pois claro!... quem não aceitaria?
Para quê então procurar ser um cidadão exemplar? Que adiantam os bons princípios como forma de vida se o que está a dar é a bandalheira e o safe-se quem puder? Que adianta investir na formação e no trabalho se a forma mais rápida e eficaz de subir na vida neste país é, pelo que vimos, esquecer a ética e os princípios e apostar na traição subterrânea e no oportunismo? Para quê dizer a um filho para se matar a estudar para garantir um melhor futuro, se os que vão dirigir o país nem sequer estudam e compram os cursinhos universitários como quem compra video games?
Bem sei que este país não é para inteligentes, mas para os espertos. Mas então, se são os espertos que têm dirigido assim tão bem este país... porque estamos afinal há tantos anos a chafurdar na merda?... ou estarei eu agora a querer ser inteligente?...
Quando era puto queria ser jogador de futebol. E não era para admirar. Eram os tempos do Eusébio, do Simões, do Torres, do José Augusto, do Coluna, do glorioso Benfica, dos Magriços de Inglaterra. Eram tempos mágicos para mim, só via bola e mais nada. Caminhava pelas ruas e só me via sonhando a correr com os pés no esférico, os espectadores a aplaudir-me e eu, fintando tudo e todos, a emprastar com a bola bem no fundo da baliza do adversário. Eram os tempos dos três F's... Fado, Futebol e Fátima. De fado não gostava muito, era todos os dias e a toda a hora na rádio e na TV. De Fátima mais ou menos, pois lá em casa a religião tinha então um peso enorme e era comer e calar. Do futebol sim, era com gosto que aos sabados e domingos jogava de manhã à noite, dando literalmente cabo do par de sapatos que os meus pais com tanto esforço me compravam. Mas tudo deu em nada. Tinha força mas, pelos vistos, não tinha jeito, ou então não me toparam devidamente, enfim, ainda fui ao Vilanovense, o clube cá da terrinha, mas não me fisgaram. Fim do sonho... que a vocação era outra.
Aos vinte anos o que mais queria era ser politico. Por alturas do 25 de Abril, frequentava eu a Escola Secundária à noite, como trabalhador-estudante, a revolução envolveu quase toda a gente, uns a favor, outros contra. Eu era a favor porque sentira na pele o que era fazer parte de uma família trabalhadora em Portugal, cujo chefe de família se vira obrigado a emigrar para sustentar a prole e garantir um futuro mais risonho. Havia que lutar por mudanças profundas no país, que intervir como cidadão empenhado na mudança. Lia muito, centenas e centenas de livros extra escolares, lia sobre política, filosofia, história, literatura, arte, arqueologia (gostava então, e ainda gosto muito, de arqueologia). Interessei-me também por linguas, a nível escolar e como autodidacta. Foram anos de muito empenho e dedicação às transformações democráticas no país, mas muito pouca dedicação a mim e à minha família. Paguei pessoalmente, com a minha família, um alto preço pele meu empenho... enquanto muitos outros "democratas", de cravo ao peito, tratavam da sua rica vidinha.
Agora, quando já devia era ter juízo, ando numa de Indiana Jones. Há uns anos atrás achei que devia perder um pouco mais de juízo e deixar-me dessas histórias de querer mudar o mundo a qualquer preço. O mundo tem mudado e vai continuar a mudar e outros virão que, muito mais expertos do que eu, lhe darão a volta muito mais subtilmente. Decidi então fazer a "revolução" dentro de mim mesmo e deixar que os outros façam a sua quando muito bem entenderem. Eu não sei nada, e tenho até mais dúvidas que certezas. Atirei-me então para a frente, fazendo o que já devia ter feito à uma dezena de anos atrás. Mas valerá a pena repescar sonhos antigos e dedicar-me a desafios de difícil concretização. Valerá a pena fazer em adulto, já cota, tudo o que os outros fizeram em meninos. Certezas não tenho, nem ninguem as tem, mas uma coisa eu sei e sinto-o dentro de mim...
Quem desce a Rua Teixeira Lopes, em Gaia, vindo do Largo dos Aviadores, depara-se, sensivelmente ao meio da rua, do seu lado esquerdo, com a conhecidíssima Quinta da Boeira, que em meados dos anos sessenta e até à alguns anos atrás, pertenceu a uma família de ingleses proprietária dos famosos armazens de vinhos Porto Taylor's. Meu pai, por essa altura, nesses anos difíceis para quem vivesse unicamente dos rendimentos do seu trabalho, labutou como jardineiro nessa famosa quinta. Fazia aí, juntamente com outros jardineiros, todos os trabalhos inerentes a uma propriedade já com algum porte, trabalhos que poderiam ir desde o tratamento de um simples quintal até à poda de árvores e tratamentos de relvas. Como toda a gente sabe, os ingleses adoram estufas de flores e o meu pai, muito habilidoso na matéria, foi incumbido pela esposa do proprietário de fazer a sua respectiva manutenção e replantação anual das mais variadas plantas e flores. Mal o meu pai lhe colocou as mãos em cima, a estufa começou a brilhar e a reflectir uma vitalidade que a todos encantava, sobretudo à senhora inglesa, esposa do proprietário. O meu pai selecionava os bolbos da futuras plantas, mudava contantemente os vasos nas alturas certas, regava com arte e sabedoria, dando um jeito à ponta da mangueira para que a água caisse nas plantas com suavidade e carinho, falava com as flores, sim, meu pai dizia que era necessário falar com as plantas e muitos outros truques mais que só ele na quinta sabia e dominava, como estrumar determinadas flores e plantas com urina, sim urina. A acrescer a tudo isto, meu pai era um jardineiro extremamente limpo e, também por isso, todas as pessoas para quem trabalhava gostavam dele. Se não acabasse o serviço que andava a fazer no mesmo dia, tinha contudo a preocupação de varrer tudo e deixar o jardim limpo e asseado. Gostava do que fazia, e era tudo.
Um dia meu pai dirigiu-se à senhora e explicou-lhe que fazia todos os trabalhos da quinta como os outros colegas e que, para além disso, cuidava da estufa, trabalho que, para além do meu pai, mais ninguem sabia fazer. Achava meu pai, então já com quatro ou cinco filhos para sustentar, que a senhora bem poderia dar-lhe um ligeiro aumento de ordenado, para o compensar do esforço extra que fazia com a estufa. A senhora disse redondamente que não, que se lhe aumentasse o ordenado a ele também teria que fazer o mesmo aos outros. E que, para além do mais, disse a senhora, trabalhava lá na quinta um outro jardineiro que lhe viera já dizer que sabia tratar tão bem da estufa como ele, Adriano, e que o faria pelo mesmo ordenado que já ganhava. Continuou então meu pai a fazer todo o trabalho da quinta e também o da estufa mas, na melhor altura, despediu-se e foi trabalhar para outro lado, com um ordenado já bem melhor.
Passado um ano ou dois, a senhora inglesa da Quinta da Boeira mandou alguem contactar meu pai para que o mesmo se dirigisse à quinta para falar com ela. Meu pai lá foi falar com a senhora, que lhe pediu, encarecidamente, que voltasse a tomar nas suas mãos a estufa e cuidasse dela como só ele sabia, pois que... "desde que você, Adriano, se foi embora, nunca mais tivemos flores como quando você cá estava, e tudo na estufa murchou". Meu pai sorriu para a senhora inglesa e desculpou-se que não tinha tempo, pois entrava cedo todos os dias e saía tarde e, para além do mais, a estufa da quinta requeria um tratamento diário e se cuidasse dela só nos fins de semana não iria resultar na estufa de que a senhora tanto gostava de mostrar aos estrangeiros que visitavam a quinta várias vezes ao ano. A senhora não desarmou e tentou comprometer o meu pai no serviço, mas meu pai mais uma vez alegou que não tinha tempo e que, ou fazia bem o serviço da estufa ou, pura e simplesmente, nem lhe tocava. A senhora mais uma vez insistiu e instou meu pai a vir tratar da estufa diariamente, na hora do almoço da empresa onde trabalhava, que ficava perto. Era um esforço descabido para o meu pai, que trabalhava lá na empresa com tarefas bastante pesadas e necessitava do máximo de descanso. Mas, por artes e promessas de bom pagamento, a senhora lá convenceu meu pai a fazer diariamente um "biscate" na hora do almoço e novamente meu pai, passado pouco tempo, colocou a estufa da senhora inglesa a brilhar e a encher a mansão da quinta com as mais belas flores que se possa imaginar. Mas a história não ficou por aqui.
A senhora, passado uns meses, confrontou meu pai com o, no seu entender, exagerado ordenado que lhe estava a pagar, dando a entender que era demasiado para um trabalho que não era assim tão difícil e não requeria conhecimentos assim por aí alem, e que até já tinha alguém em vista que lhe faria mais barato e igual. Meu pai parou de imediato o que estava a fazer e disse à senhora que a partir daquela altura não mais tocaria na estufa e que a senhora poderia contratar para a tarefa quem bem quizesse... e foi-se embora. Meu pai soube mais tarde, passado uns tempos, que a estufa nunca mais foi bonita e bem tratada como quando andava pelas suas mãos e que a senhora estava muito desgotosa com tudo isso. Mais tarde soube tambem que a outrora bela e resplandescente estufa estava simplesmente... abandonada.
Alguns anos passaram e, um domingo de manhã, um carro com motorista esperava meu pai à porta da capela dos Padres Redentoristas, que entretanto aí assistia à missa. O motorista vinha da parte da senhora inglesa da Quinta da Boeira, que pedia por favor e encarecidamente a meu pai que viesse urgentemente com o motorista à quinta para dirigir e supervisionar a confecção de palmas de flores, como só ele sabia fazer e eles não conseguiam, para o funeral do proprietário inglês da quinta, que entretanto havia falecido. O meu pai lá foi urgentemente a correr fazer aquilo que ele mais bem sabia fazer... tratar e falar com flores.
Decorridos uns anos, ainda hoje tento aprender a falar com flores... mas acho que jámais o farei tão bem como o meu pai o fazia na famosa Quinta da Boeira.
No tempo em que a minha rica avósinha era viva a austeridade era mesmo a sério... era todos os dias. Não era fartura de manhã e esbanjamento à tarde, era austeridade a toda a hora. Seis netos para alimentar era uma grande consumição e fortes dores de cabeça. E a austeridade não era para um neto ou dois... era para todos lá em casa, que com minha mãe, meu pai e minha avó somavamos nove. A austeridade de hoje em dia é só para alguns, para os que vivem do seu trabalho e das sua reformas, pois que esses que andam nessas TV's a propalar a austeridade estão bem resguardados e não prescindem das suas mordomias. Veja-se o caso do Ministro da Solidariedade e Segurança Social, o tal que chegou de "lambretta" e agora se passeia num confortável Mercedes. O homem não se satizfez em passar da "lambretta" para um Renault Clio ou para um Fiat Uno... não!... o homem teve logo que saltar, mal chegou ao Governo, de uma modesta "lambretta" para um espampanante e milionário carrão. Para quem é então a austeridade?... para o Zé pacóvio, claro!...
Não, no tempo da minha avósinha não era nada assim. Lembro-me muito bem do esforço que se fazia lá em casa para que o nosso estomago não andasse a dar horas, como eu via em tantos outros miúdos lá da rua. Tudo se aproveitava, todas as sobras guardadas para uma próxima refeição. Muitos dos pratos que eu hoje ainda adoro aprendi a gostar deles nesses tempos de rigorosa e diária austeridade. Era o bacalhau à espanhola, o bacalhau cozido, o bacalhau à Brás, o bacalhau à Gomes de Sá. Era a sopa de legumas, as torradas de sêmea com manteiga ao domingo de manhã, antes da missa. Havia também um aproveitamento de sobras que a minha avósinha fazia e que hoje, cá em casa, para além dos outros pratos, ainda faço. Trata-se do pastelão com brôa de milho, uma iguaria parecida com a tortilha espanhola e que eu adoro. Aproveitavam-se as sobras de carnes, chouriços e batata cozida e cortava-se tudo aos bocadinhos, juntamente com cebola e salsa picada. Juntavam-se as sobras com a brôa de milho, esfarelada à mão, dentro de uma tijela, juntamente com a cebola e a salsa. Misturava-se tudo com cinco ou seis ovos batidos, gema e clara, e temperava-se com sal e um pouco de pimenta. Colocada a sertã ao lume e depois de devidamente aquecida, fazia-se como uma simples omelete, mas a toda a largura da sertã, como as tortilhas. Dava um triangulo para cada um dos netos... mas sabia a pouco. Humm... aviava já agora uma!...
Um dia desta semana vou lembrar os tempos de austeridade da minha rica avósinha com um pastelão com broa de milho, não só para alguns felizardos... mas para todos lá em casa.