Só quem já alguma vez foi ao Douro pode acreditar que tenha sido possível a mãe natureza bafejar este país com semelhante espectáculo de beleza e grandiosidade. Lembro-me de lá ter ido pela primeira vez com o meu pai, que era natural de Soutelo do Douro, concelho de S. João da Pesqueira. Fiquei então maravilhado com aquela primeira viagem de comboio, com partida da Estação de S. Bento, no Porto, e com término na Estação do Tua, para então atravessar de barco a remos para a margem esquerda do Rio Douro, em direcção à freguesia de Soutelo, subindo a íngreme encosta a pé, com enorme esforço, debaixo de um calor tórrido e arrazador que, em conjunto com o trabalho duro e centenário das laboriosas gentes do Douro na construção dos socalcos de pedra que suportam a célebre vinha, é o verdadeiro fermento do mundialmente famoso Vinho do Porto.
Depois daquela primeira vez, tive ainda outras idas mais alargadas ao vasto espaço duriense, naquelas viagens maravilhosas de fim-de-semana de visita às amendoeiras em flor, realizadas pela CP, com trajectos de comboio e autocarro, mas igualmente noutras alturas ainda bem mais recentes, agora de práctico automóvel, sem por nunca me enjoar das fantásticas paisagens proporcionadas pelo Rio Douro e as suas inúmeras barragens e encostas. Ultimamente, é com grande satisfação que podemos presenciar a enorme quantidade de portugueses e turistas que sulcam o glorioso rio e pasmam de espanto perante tão incrível dádiva da natureza. E a aventura começa, ou deve começar sempre, pela agora majestosa e incrível cidade do Porto, diariamente restaurada e embelezada para ficar sempre bem na fotografia do turista, mas infelizmente a cada dia que passa arredada das suas gentes características, empurradas à força para fóra das suas casas centenárias para darem agora lugar e espaço aos "hostels" e hoteis das mais diversas categorias.
O incrível vale do RioDouro é hoje em dia um foco crescente de negócios que movimentam muitos milhões. Mas não será que corremos o risco de matar a galinha dos ovos de ouro ao despovoarmos perigosamente a região das gentes que lhe dão alma e que lhe são tão características?...
Há para aí muito boa gente que quando começa as férias entra em "stress" e quando as termina cai na fossa. Não sei bem porquê mas nunca encaixei essa de partir a galope no primeiro dia de férias e regressar delas no último. Ir de férias, penso eu, não deverá ser nunca uma obrigação mas sim um deleite, um gozo, um prazer, uma aventura, um divertimento. É claro que, assim como há quem adore passar duas horas numa fila de carros durante um fim de semana, afim de mostrar a toda a gente a última "bomba" que comprou a prestações, também existem certamente aqueles que fazem das férias um momento demonstrativo do seu elevado "status" social, sustentado nem que seja a economizar nas fatias de fiambre e queijo que por vezes se comem lá em casa, que isto de entrar todos os anos ao despique das melhores fotografias de férias no Facebook tem os seus custos e, tendo-se entrado na corrida, é sempre de mau tom sair dela sem uma justificação plausível aos inúmeros "amigos" que tanto trabalho deram coleccionar.
É pensando naquelas e em outras situações que por vezes me vem à memória as minhas férias de quando era puto, em que os intervalos entre cada ano escolar eram então de nada mais nada menos que três meses. Aquilo sim, eram férias grandes e espremidas, em que com pouco se fazia muito e cinquenta quilómetros eram mais de trezentos nos dias de hoje. Férias para mim era partir com a minha avó numa camioneta velhinha da Feirense, apanhada na Avenida da República, em frente à Câmara de Gaia, com destino a Cabeçais, Arouca. Aquilo era uma autêntica aventura!... chegar aos Carvalhos era empolgante, com a camioneta a roncar a fundo nas subidas da antiga EN 1. Aí chegados, ainda havia que passar e subir para Grijó e, mais à frente, havia paragem mais que certa na Garagem da Feirense, em Lourosa, para mudar de camioneta. Após grande confusão, no meio de inúmeros passageiros, camionetas, galinhas, pequenos pipos de vinho, embrulhos e açafates, nova corrida até Cabeçais, onde era feita mais uma mudança de camioneta, desta vez para uma ainda mais pequena e mais ronceira, que nos levaria até Belece, uma pequena e bonita aldeia da Freguesia de S. Miguel do Mato, terra de minha mãe. Fazer 40 Kms, de Gaia a Belece, por estradas e estreitas ruas em curvas e contra-curvas até perder de vista, era então uma aventura extraordinária, só ultrapassada pelo que iria acontecer nos seguintes quinze dias de férias, com correrias loucas pelos campos e pinhais da aldeia, acordar com o cheiro da lareira acesa, chafurdar nos regatos e presas de água fresca que corria com fartura, andar de carro de bois com o Zé Pessegueiro (contra a vontade da minha avó), ouvir os inúmeros pássaros, fazer tramelas (espécie de catavento) e ventoinhas com a casca seca dos eucaliptos, apanhar lenha para a minha avó ou ir com ela às Juntas, terra dos meus bisavós, comer broa de milho, rojões e carne com batatas assadas.
As férias de que mais me lembro eram assim, em miúdo, sem grande "stress", feitas de pequenas aventuras, vividas, longas caminhadas, simples, rodeadas de natureza e vida, de pequenas coisas, pagas na hora, de ir e chegar ao ritmo da camioneta ronceira que nos levava, e que por vezes não nos trazia, pelo que no regresso, de Belece a Cabeçais, vinhamos no táxi do Zeca, extravagância e então luxo que a minha avó tinha que suportar, para não perder a camioneta de ligação que vinha de Arouca para o Porto.
No último domingo do ano meti-me à aventura e fui dar água sem caneco lá para os lados de Labruge, Vila do Conde. Não sei porquê mas custa-me desligar-me do mar, pois, vivendo todos os dias com o mar tão perto... decidi-me e fui de novo respirar o mar. Será que nas minhas veias corre sangue viking, esso povo guerreiro adorador do oceano?... efectivamente não sei... mas suspeito que os "rus", povo viking que deu origem ao reino de Kiev e mais tarde ao povo russo, devem ter algo a ver comigo. Pois, como ia dizendo, cheguei a Labruge, Vila do Conde, vindo de Angeiras, Matosinhos, quando me deparei com uma tabuleta que me indicava o Castro de S. Paio. Castro, civilização celta, história, local desconhecido, novos conhecimentos, novidades, praia, mar, aventura, conjugação de sensações explosivas... e lá fui eu a correr.
O Centro Interpretativo de S. Paio, no Lugar de Moreiró, Labruge, Vila do Conde, é um espaço cultural interesantíssimo situado mesmo junto a uma praia lindíssima. Aí podemos inteirar-nos e apreciar as ruinas de um antigo castro, povoado da idade do ferro habitado por povos a quem os romanos apelidaram de Calaicos, e que é tão somente o único castro marítimo da parte portuguesa do noroeste da península. No Centro Interpretativo, todo muito bem documentado com informação e objectos, podemos apreciar diversas peças arqueológicas recolhidas no local e fora dele, como pequenos brincos em pedra que serviam para fazer peso nas redes de pesca, machados de pedra, pequenos objectos de cerâmica e outros usados para tecer. Mesmo junto ao mar, podemos ver ainda os chamados "penedos amoladoiros", rochas utilizadas para afiar os machados de pedra.
Como o Centro Interpretativo é servido por um pequeno bar-restaurante, decidi aproveitar para dar uma vista de olhos e analisar o cardápio e, sentado à mesa, surpresa das surpresas... mas que ricas petingas (sardinhas pequenas)fritas em farinha milha, que excelentes rissóis de camarão, que saborosos bolinhos de bacalhau... daqueles com bacalhau a sério. Mas há mais, que ficam para degustar na próxima visita, como aquele pratinho que vimos passar mesmo rente ao nosso nariz... mas que ricas ameijoas com molhinho servido à maneira!...
Para quem gostar da mescla apresentada... uma visitinha a não perder num próximo domingo!...
Janeiro de 1984, Moscovo. Estradas e passeios cobertos de neve. Um frio de rachar, com mais de vinte graus negativos. Bem fiz eu em seguir os conselhos de um meu amigo e comprar uma "chapka", uma espécie de boné russo com extensões para tapar as orelhas, feito de pele de coelho. Acertei também em trazer umas boas botas capeadas com borracha, pois com capas de couro seria de morrer, com a humidade gelada a subir-me pelas pernas acima. Moscovo é uma cidade enorme, com avenidas gigantescas, fria e sem o aspecto das cidades europeias ocidentais, desde logo pela escassez de estabelecimentos comerciais onde se possa comprar as habituais bugigangas ou tomar um chã ou café em cada esquina. Claro que tem restaurantes bons e maus como em qualquer outro lado, e até de luxo, mas para isso é preciso conhecer alguem que domine a cidade. Um amigo levou-me a um desses restaurantes populares situado numa cave meio escondida, atravessado por uma barulheira enorme e frequentado pelos residentes locais, sempre atentos à presença de sofisticados estrangeiros. Foi aí que provei o arenque fumado à maneira russa, acompanhado de uma enorme caneca de cerveja. Gostei e ainda hoje perco a cabeça com peixes fumados.
Ir a Moscovo sem ver o Kremlin é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa. Lá fui eu então ver o ícone do poderio soviético, com as suas muralhas vermelhas muito bem conservadas. Lá estavam o mausoléu de Lenine, a majestosa Catedral ortodoxa de S. Basilio, imponente e belíssima, de cores muito vivas e cúpulas douradas, os famosos Armazéns GUM, onde se podia comprar quase tudo mas se não tivessemos moeda forte estrangeira não compravamos quase nada. Admirava-me muito com toda aquela gente que calcorreva Moscovo, estrangeiros por todos os lados, diversos povos dos mais distantes lugares dos confins do império, russos, kazaques, arménios, tadjiques, moldavos, turcomanos e tantos outros. As mulheres russas davam de sobremaneira nas vistas, com os seus fabulosos casacos de peles, que, acrescidos à sua natural beleza, mais as realçava.
Andar no Metro de Moscovo é uma experiência incrivel, com todas aquelas linhas sobrepostas e estações maravilhosamente ornamentadas, autênticas obras de arte.
Ir a Moscovo e não comer caviar é o mesmo que ir a Paris e não comer paté de pato. O mais caro é o caviar preto mas, à falta de dolares ou marcos, vai mesmo do vermelho, mais barato mas igualmente bom, pelo menos para mim, que não sou esquisito. E é que não sou mesmo, pois até me dei à experiência de provar e finalmente comer várias vezes a famosa "kaxa" russa, uma espécie de papas de aveia.
Muito me admirei de ver a circular em Moscovo centenas e centenas de camiões a carburar gasolina e não gasóleo, muito mais barato. Mas será que esta gente anda a nadar assim tanto em petróleo? Pelos vistos andava mesmo. Outra coisa que demorei a compreender foi o extraordinário interesse dos jovens soviéticos pelas famosas calças de ganga ocidentais, a nossas "jeans", como as minhas, pelos vistos uma autêntica raridade por aqueles lados. Os soviéticos não tinham qualquer dificuldade em fabricar os mais complexos misseis intercontinentais, os mais que gigantescos submarinos atómicos e os mais sofisticados satélites... fabricar "jeans" é que era para eles uma dificuldade, pois que, diziam, corrompia a juventude. Muito honesta e sinceramente... não percebi esta preocupação com as "jeans" ocidentais, mas também não fazia mal, o passeio estava a chegar ao fim.
Para se gostar então de Moscovo era necessário gostar de viajar e contactar todos os dias com pessoas e experiências novas, e eu sempre gostei muito. Para alem do mais, sempre suscitaram a minha admiração os autores russos do "Taras Bulba" e de "Os Irmãos Karamazov"... e eu suspirava por um pouco desse ambiente admirável, mesmo que só aproximado e alterado em muito pelo terramoto de 1917.
Até à próxima, pátria de Gogol e Dostoievski... até à próxima!...